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Novo decreto da segregação impõe retrocesso à educação inclusiva no Brasil
São Paulo, 12 de dezembro de 2025.
É lamentável que, pouco mais de um mês após a publicação da Política Nacional de Educação Especial Inclusiva – PNEEI/2025, por meio do Decreto nº 12.686/2025, o governo federal tenha publicado, em 9 de dezembro, um novo decreto, cuja finalidade foi acomodar as exigências de instituições especializadas que, historicamente, defendem a manutenção da segregação escolar no Brasil.
Como alertamos em posicionamento anterior, a PNEEI/2025 distorce conceitos basilares da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI/2008, o que a torna um marco que impõe retrocesso à política educacional brasileira e, mais gravemente, ao direito dos estudantes com deficiência de acessarem a escola comum, incondicionalmente, com as medidas de acessibilidade necessárias.
Agora, o Decreto nº 12.773/2025 põe uma pá de cal sobre o projeto educacional brasileiro que revolucionou não apenas o acesso à escola comum para esses estudantes, mas que também redefiniu a educação especial com modalidade não substitutiva ao ensino comum e trouxe para o âmago da escola as discussões sobre a transformação das práticas pedagógicas. À revelia do art. 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – CDPD/2006, a nova política incorpora o artigo 58 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN/1996, orientando os sistemas de ensino a organizarem o atendimento escolar com matrícula em escolas comuns e em classes e escolas especiais.
Art. 58. Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação.
[…]
§ 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular.
A LDBEN foi publicada em 1996, quando era vigente a Política Nacional de Educação Especial de 1994, que previa classes e escolas especiais como partes essenciais da modalidade de educação especial. O art. 58 da LDBEN foi superado a partir da publicação da CDPD, em 2006, e sua posterior incorporação como texto constitucional, em 2009. Por esse motivo, o referido artigo, especialmente seu parágrafo 2º, tornou-se incompatível com os preceitos constitucionais.
A política de educação especial de 2008 foi um marco na superação do teor do art. 58 da LDBEN/1996, pois se baseou na meta de inclusão plena e consequente eliminação da segregação escolar preconizadas pela Constituição Federal e pela CDPD/2006. Nessa toada, o Brasil também firmou, em 2015, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei n.º 13.146/2015), operacionalizando o direito à educação inclusiva.
A PNEEPEI/2008 redefiniu a educação especial, retirando seu caráter substitutivo e dando condições aos sistemas de ensino para organizarem a modalidade de modo complementar ou suplementar à formação escolar dos estudantes, por meio da oferta do Atendimento Educacional Especializado – AEE. Nesse sentido, a política de 2008 também rompeu com o modelo de adaptação curricular, retomado na atual política sob a denominação de Plano Educacional Individualizado – PEI. Na perspectiva inclusiva, todos os estudantes podem aprender juntos, com condições de acessibilidade ao currículo comum, organizadas e ofertadas pelo AEE na escola comum, também podendo ser ofertado pelas instituições especializadas.
Desse modo, ao reincorporar o art. 58 da LDBEN/1996, por meio do Decreto nº 12.686/2025, alterado pelo Decreto nº 12.773/2025, o MEC traz de volta a educação especial com caráter substitutivo como cerne de sua política de educação especial, o que configura um retrocesso inadmissível.
A justificativa do MEC de que era necessário criar um decreto para garantir segurança jurídica aos sistemas de ensino não faz sentido, pois o direito das pessoas com deficiência à educação em escolas comuns é ponto pacificado no sistema de justiça, uma vez que baseado em preceitos constitucionais, consagrados pelo Supremo Tribunal Federal – STF ao conceder liminar suspendendo o Decreto n.º 10.502/2020, do governo Bolsonaro, que também admitia classes e escolas especiais. A alegada insegurança jurídica, portanto, era dos setores segregativos, que não encontravam mais respaldo legal para manter escolas especiais. Se o MEC resolveu alguma insegurança jurídica foi a dessas instituições, violando direitos fundamentais.
A PNEEPEI/2008 foi uma conquista histórica que fez avançar na concepção de escola inclusiva e na mudança cultural sobre os direitos das pessoas com deficiência à inclusão social. Diante desses avanços, várias tentativas se sucederam com o objetivo de reformular a política de 2008 para restabelecer um sistema paralelo de educação especial, o que foi concretizado pela PNEEI/2025.
Por que o art. 58 da LDBEN/1996 figura tanto no decreto da segregação de Bolsonaro quanto no atual decreto?
Tal retrocesso é inaceitável e exige o engajamento imediato de todos os setores da sociedade comprometidos com a meta de inclusão plena. Por isso, a fim de contribuir com o debate, apresentamos um quadro comparativo dos fundamentos da PNEEPEI/2008, do Decreto 10.502/2020 e do Decreto 12.686/2025.
QUADRO COMPARATIVO
| Assunto | PNEEPEI/2008 | DECRETO N.º 10.502/2020 | DECRETO N.º 12.686/2025 | Considerações |
| Educação Especial | VI – Diretrizes da PNEEPEI A educação especial é uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, realiza o atendimento educacional especializado, disponibiliza os recursos e serviços e orienta quanto a sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular. | Art. 2º I – educação especial – modalidade de educação escolar oferecida, preferencialmente, na rede regular de ensino aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação; | Art. 1º § 1º A modalidade da educação especial será oferecida de maneira transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, com vistas a assegurar recursos e serviços educacionais para apoiar, complementar e suplementar o processo de escolarização. Art. 3º IX – oferta de educação especial preferencialmente na rede regular de ensino; Art. 4º-A Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão a modalidade da educação especial em seus sistemas de ensino, que poderá ser realizada por meio de parcerias e convênios com as instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial, nos termos do disposto no art. 58 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Art. 58 (LDBEN/1996) Entende-se por educação especial, para os efeitos desta Lei, a modalidade de educação escolar oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. | A PNEEPEI/2008, em consonância com a CDPD/2006, redefine a educação especial como modalidade não substitutiva à escolarização, tendo estritamente caráter complementar e suplementar. O Decreto n.º 10.502/2020 reproduz o art. 58 da LDBEN/1996. O Decreto n.º 12.686/2025 usa esse mesmo artigo para restabelecer o caráter segregacionista da educação especial, ao mesmo tempo em que mantém a oferta complementar e suplementar da modalidade. Além disso, o termo “preferencialmente” aparece vinculado à matrícula na escola comum tanto no Decreto n.º 10.502/2020 quanto no Decreto n.º 12.686/2025, enquanto, na PNEEPEI/2008, esse termo se refere à oferta do AEE, conforme o art. 208 da Constituição Federal. Considerando que a CDPD/2006 foi ratificada como emenda constitucional, seu art. 24 preconiza que o direito à educação somente se efetiva em um sistema educacional inclusivo. |
| Assunto | PNEEPEI/2008 | DECRETO N.º 10.502/2020 | DECRETO N.º 12.686/2025 | Considerações |
| Escolas e classes especiais | II – Marcos históricos e normativos A educação especial se organizou tradicionalmente como atendimento educacional especializado substitutivo ao ensino comum, evidenciando diferentes compreensões, terminologias e modalidades que levaram à criação de instituições especializadas, escolas especiais e classes especiais. Essa organização, fundamentada no conceito de normalidade/anormalidade, determina formas de atendimento clínico-terapêuticos fortemente ancorados nos testes psicométricos que, por meio de diagnósticos, definem as práticas escolares para os alunos com deficiência. | Art. 2º. VI – escolas especializadas – instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos; VII – classes especializadas – classes organizadas em escolas regulares inclusivas, com acessibilidade de arquitetura, equipamentos, mobiliário, projeto pedagógico e material didático, planejados com vistas ao atendimento das especificidades do público ao qual são destinadas, e que devem ser regidas por profissionais qualificados para o cumprimento de sua finalidade; | Art. 4º-A Os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão a modalidade da educação especial em seus sistemas de ensino, que poderá ser realizada por meio de parcerias e convênios com as instituições privadas sem fins lucrativos, especializadas e com atuação exclusiva em educação especial, nos termos do disposto no art. 58 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Art. 58 (LDBEN/1996) § 2º O atendimento educacional será feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua integração nas classes comuns de ensino regular. | A PNEEPEI/2008 objetiva superar o modelo segregacionista ao abordar criticamente esse modo de organização do sistema educacional. Da mesma forma, a CDPD/2006 e a LBI/2015 não mencionam classes ou escolas especiais, uma vez que são incompatíveis com o paradigma da inclusão. O Decreto n.º 10.502/2020 e o Decreto n.º 12.686/2025, por tomarem como base a LDBEN/1996, coincidem na institucionalização da segregação escolar, pois admitem a escolarização em classe ou escola especial, de acordo com a condição de deficiência. Essas normas violam o direito constitucional, inalienável e indisponível das pessoas com deficiência por condicionarem o acesso à escola comum e legitimarem a segregação. |
| Assunto | PNEEPEI/2008 | DECRETO N.º 10.502/2020 | DECRETO N.º 12.686/2025 | Considerações |
| Atendimento Educacional Especializado | VI – Diretrizes da PNEEPEI O atendimento educacional especializado tem como função identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com vistas à autonomia e independência na escola e fora dela. […] O atendimento educacional especializado é realizado mediante a atuação de profissionais com conhecimentos específicos no ensino da Língua Brasileira de Sinais, da Língua Portuguesa na modalidade escrita como segunda língua, do sistema Braille, do Soroban, da orientação e mobilidade, das atividades de vida autônoma, da comunicação alternativa, do desenvolvimento dos processos mentais superiores, dos programas de enriquecimento curricular, da adequação e produção de materiais didáticos e pedagógicos, da utilização de recursos ópticos e não ópticos, da tecnologia assistiva e outros. | Art. 4º III – assegurar o atendimento educacional especializado como diretriz constitucional, para além da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade complementar ou suplementar; Art. 6º I – oferecer atendimento educacional especializado e de qualidade, em classes e escolas regulares inclusivas, classes e escolas especializadas ou classes e escolas bilíngues de surdos a todos que demandarem esse tipo de serviço, para que lhes seja assegurada a inclusão social, cultural, acadêmica e profissional, de forma equitativa e com a possibilidade de aprendizado ao longo da vida; Art. 7º II – centros de atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência intelectual, mental e transtornos globais do desenvolvimento; III – centros de atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência físico-motora; IV – centros de atendimento educacional especializado; XI – escolas-polo de atendimento educacional especializado; XV – serviços de atendimento educacional especializado para crianças de zero a três anos; XVI – serviços de atendimento educacional especializado. | Art. 5º O Atendimento Educacional Especializado – AEE é atividade pedagógica de caráter complementar à escolarização de pessoas com deficiência e transtorno do espectro autista, e suplementar à escolarização de pessoas com altas habilidades ou superdotação, de acordo com o disposto nos art. 27 e art. 28 da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Art. 6º São objetivos do AEE: I – qualificar as condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem dos estudantes que são o público da educação especial; II – identificar estudantes que são o público da educação especial, por meio de estudo de caso; III – desenvolver e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que assegurem acesso, permanência, aprendizagem e participação dos estudantes em todas as atividades educacionais; IV – contribuir para o desenvolvimento de recursos didáticos e estratégias pedagógicas; V – sistematizar e articular o trabalho dos diferentes profissionais da educação envolvidos com o atendimento aos estudantes que são o público da educação especial; VI – promover condições para a continuidade de estudos dos estudantes que são o público da educação especial até os níveis e as etapas de ensino mais elevados; e VII – fomentar e integrar as ações intersetoriais, notadamente entre as áreas que compõem a rede de proteção social. | A PNEEPEI/2008 estabelece o AEE como um serviço da educação especial cuja finalidade precípua é a garantia das condições de acessibilidade no contexto escolar, com o objetivo de identificar e eliminar os diversos tipos de barreiras. A política de 2008 também relaciona os conteúdos próprios do AEE, a fim de diferenciar o trabalho realizado nesse serviço daquele da sala de aula comum e de orientar a formação dos professores para atuação no AEE. O Decreto n.º 10.502/2020 define o AEE como um serviço substitutivo ao ensino comum, entendido como escolarização segregada ou ensino diferenciado na escola comum. Sua oferta também é feita em centros organizados por tipos de deficiência, o que tinha sido suplantado pela PNEEPEI/2008. Em que pese o Decreto n.º 12.686/2025 remeta aos artigos 27 e 28 da LBI/2015, o art. 6º, inc. II, acrescenta como um dos objetivos do AEE a identificação dos estudantes que são público da educação especial. Com isso, a norma retrocede ao colocar a ênfase na condição de deficiência e não na identificação e eliminação das barreiras presentes no contexto escolar, lógica que também fundamenta o Decreto 10.502/2020. |
Assunto | PNEEPEI/2008 | DECRETO N.º 10.502/2020 | DECRETO N.º 12.686/2025 | Considerações |
| Plano educacional individualizado | VI – Diretrizes da PNEEPEI As atividades desenvolvidas no atendimento educacional especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas à escolarização. […] Ao longo de todo o processo de escolarização esse atendimento [AEE] deve estar articulado com a proposta pedagógica do ensino comum. O atendimento educacional especializado é acompanhado por meio de instrumentos que possibilitem monitoramento e avaliação da oferta realizada nas escolas da rede pública e nos centros de atendimento educacional especializados públicos ou conveniados. | Art. 2º XI – planos de desenvolvimento individual e escolar – instrumentos de planejamento e de organização de ações, cuja elaboração, acompanhamento e avaliação envolvam a escola, a família, os profissionais do serviço de atendimento educacional especializado, e que possam contar com outros profissionais que atendam educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. | Art. 11 § 2º O resultado do estudo de caso fundamentará o Plano de Atendimento Educacional Especializado – PAEE e o Plano Educacional Individualizado – PEI Art. 12. É obrigatória a realização de documento individualizado de natureza pedagógica, com atualização contínua, como PAEE e o PEI, que derive do estudo de caso. | A PNEEPEI/2008 não prevê planos individualizados, uma vez que esse tipo de documento se baseia na condição de deficiência, na definição de atividades do ensino comum distintas daquelas trabalhadas com os demais estudantes da mesma turma e na elaboração de adaptações curriculares que reduzem ou limitam o currículo. Tais práticas se contrapõem ao sentido da educação inclusiva. Incorporando as inovações trazidas pela PNEEPEI/2008, a LBI/2015, no art. 28, inc. VII, preconiza o planejamento de estudo de caso, a elaboração de plano de atendimento educacional especializado, além da organização de recursos e serviços de acessibilidade e oferta de tecnologia assistiva. Tanto o Decreto n.º 10.502/2020 como o Decreto n.º 12.686/2025 retrocedem ao responsabilizarem o professor do AEE pela escolarização dos estudantes com deficiência, por meio da elaboração de planos individualizados, restringindo o acesso deles ao currículo comum. A coexistência de PAEE e PEI é incoerente, pois esses instrumentos partem de pressupostos distintos: o primeiro se baseia na inclusão escolar, enquanto o segundo está ancorado na integração escolar, cuja base é o modelo biomédico da deficiência. |